Anos atrás, no início da década de 80 - não sei precisar quando - escrevi o poema 'A Demolição da Casa Mourisca'.


A casa, em questão, era um dos casarões da Avenida Paulista, em São Paulo, que estava na mira da Secretária da Cultura para ser tombada pelo patrimônio histórico e foi demolida pelos proprietários para evitar o tombamento.


Pela sua beleza, seu valor arquitetônico e histórico criou-se uma resistência contra a sua demolição porque três outras casas já haviam sido demolidas pelo mesmo motivo.


Briga pra cá, briga pra lá, uma madrugada, ao retornar de táxi pra casa, fui testemunha do início da demolição.


Vi de perto o 'Senhor Capitalismo' trabalhando na calada da noite com todo o seu furor e ganância.


Do táxi, pude observar o interior do banheiro superior da casa, já que a parede estava no chão.


Observei também uma das salas do térreo, sem parede.


O jardim, antes lindo, cheio de entulhos.


E eu comecei a pensar nas pessoas que nela viveram... independente de questões político-sociais.


O táxi seguiu, a casa morrendo... o poema nasceu.


Assim:


O que farão com o tempo que passa na Casa Mourisca?
Passarão uma borracha, jogarão borrão de tinta?


O que farão com as paredes que erguem a Casa Mourisca?
Erguerão um novo templo, contando histórias vividas?


O que farão com o telhado que cobre a casa Mourisca?
Construirão novos abrigos, por todos os seus sentidos?


E os fantasmas das avós que habitam a casa Mourisca?
Gostarão do espigão que ali será erguido?


E o choro da criança aflita que enche a casa Mourisca?
Chorará na eternidade entre o concreto e o vidro?


E o rangido de portas que assustam na Casa Mourisca?
Habituarão com o óleo que virá nas dobradiças?


O que farão com os afetos que dormem na Casa Mourisca?
Acordarão com o barulho do martelo demolindo?

 

O que farão com os sonhos que vagam na Casa Mourisca?
Colocarão num caixote, jogarão numa piscina?


O que farão com os mortos que jazem na Casa Mourisca?
Desenterrarão os seus ossos, levarão para a polícia?


E os beijos apaixonados que estalam na Casa Mourisca?
Agüentarão os estalos da máquina de datilografia?


E os abraços fogosos que aquecem a Casa Mourisca?
Não ficarão resfriados com o frio do alumínio?


E os coitos angustiados que marcam a Casa Mourisca?
Não ficarão sem orgasmo no frio da secretaria?


O que farão com a vida que foi a Casa Mourisca?
Transformarão em poeira, queimarão os registros?


O que farão do orgulho do rosto da Casa Mourisca?
Baterão com o ferro, racharão sua superfície?


O que farão com os cantos que cantam na Casa Mourisca?
Levarão pra praça pública, condensarão em um disco?


E o chá das quatro horas que alegra a casa Mourisca?
Será transformado em café, comprado na padaria?


E os jantares de gala que cheiram na Casa Mourisca?
Sucumbirão perante o queijo, o presunto e a lingüiça?


E os talheres de prata que brilham na Casa Mourisca?
Perderão todo o seu brilho, será o mesmo que lixo?


O que será deste mundo de todas as casas Mourisca?
Também não será respeitado, também não terá justiça?


O que será desses homens que roubam a casa Mourisca?
Viverão impunemente seus dias de confraria?


O que será desses homens que matam a casa Mourisca?
Receberão no fim do mês seus salários de assassinos?


O que será de nós todos, amigos da Casa Mourisca?
Choraremos sua queda, pra esquecer em seguida?


Enfim, foi só uma casa... só um poema!


Mas às vezes a vida nos chama às falas.


E, de uma maneira ou outra, temos que conversar.


Foi o que fiz.


TõeRoberto

publicado por Antonio Medeiro às 18:00